Ep. 7. Transdisciplinaridade
Mais um episódio. Dessa vez a gente vai conversar sobre um tema denso,
transdisciplinaridade e como a gente vai relacionar isso com o corpo e
o movimento. Como é muito denso, eu trouxe ajuda. A Isabela Crema vai
falar um pouco sobre isso, mas também sobre a nossa vivência no
movimento, nas nossas imersões em todos esses anos nessa prática.
Vamos começar? Eu vou começar te apresentando. Apresentar você em
relação a mim é fácil. Isabela Crema é minha aluna, minha professora, mas
ela é antes de tudo minha esposa. E a gente vai falar sobre um tema aqui
que, para mim, ela é uma das pessoas mais indicadas para falar, que é
transdisciplinaridade. Esse nome grande, esse nome que muitas pessoas
estão usando às vezes até sem saber muito bem o que ele significa, mas que
ela vai estar aqui para ajudar a gente a dar uma dissecada, a investigar um
pouquinho e dizer o que isso tem a ver com movimento. Lógico, não será só
isso, será também um pouquinho da nossa experiência, da nossa
experiência praticando movimento, da nossa experiência indo para diversos
eventos. Já são sete ou oito anos viajando o mundo, ao redor do mundo
inteiro, trazendo pessoas do mundo inteiro para cá também para nos dar
mais combustível, mais produtos, para que a gente complexifique ainda mais
essa bela prática que a gente escolheu para a nossa vida. Isabela Crema é
formada em psicologia, tem diversos trabalhos que não se limitam a isso,
ela é professora da Pratique Movimento também, dá aulas aqui, tem trabalho
com jovens, inclusive, com transdisciplinaridade em si, tem trabalho em
comunidades indígenas, tem trabalho até demais, eu acho que ela deveria ter
um pouquinho menos, mas ela para mim é uma super heroína, ela dá conta,
queria que você falasse um pouquinho sobre você nesse início.
Oi. Tá, eu sou psicóloga, sou educadora, eu venho trabalhando com jovens,
principalmente, há muito tempo com transdisciplinaridade, a partir dessa
perspectiva mais da educação. Sou praticante de movimento, aqui é uma
escola muito importante para mim, para a minha vida, em que eu aprendo
coisas demais e que eu aplico na minha vida. E aí já começa essa questão
da transdisciplinaridade entrar.
Mas você falou que é psicóloga, você atende psicologia
mesmo, consultório tradicional?
Sim, eu atendo em um consultório, adolescentes e jovens adultos, eu
coordeno na Unipaz DF a formação holística de base para jovens, que é onde
a gente aplica uma educação transdisciplinar. Eu também faço um trabalho
com um professor meu do Novo México, John Stokes, que a gente vai para o
Xingu fazer trabalho em comunidades indígenas. Eu também
sou várias outras coisas, sou guia de turismo internacional, que também é
um grande laboratório para mim desse
mergulho com os jovens, com os adolescentes.
Você também tem um trabalho com agrofloresta, que coincidentemente fica
no quintal da minha casa, onde a gente planta, a gente colhe, a gente
beneficia esses alimentos, a gente processa eles, não no sentido de
processar quimicamente, são todos naturais, mas no sentido de sofrer
algum processo que às vezes pode ser só uma secagem, moer. Ontem
mesmo você passou o domingo inteiro trabalhando nisso. É um trabalho que
te traz muito prazer mas é um trabalho, é um trabalho muito nobre também.
É verdade, sou agroflorestora com muito amor, uma parte bem importante da
minha vida que inclusive tenho dedicado muitas e muitas horas nele.
Legal, eu vou querer que você fale um pouquinho da sua vivência, do seu
background, do seu histórico de atividade física. Eu vou falar um pouquinho
do que eu sei, se eu esquecer alguma coisa você complementa e eu vou
tentar criar uma linha até o momento que você foi apresentada ao Ido Portal,
nosso professor, a essa perspectiva do movimento, a essa cultura do
movimento. Você é uma pessoa que também sempre gostou de atividade
física, talvez um pouquinho mais orientada para dança, para a música, você é
uma musicista também, esquecemos de dizer isso inclusive. Você praticou
yoga, ashtanga yoga, se eu não me engano, durante oito anos.
Doze.
Doze anos, muito mais do que oito. Você dançou algumas modalidades
diferentes, você fez circo, você treinou circo, praticou circo, acho que treinar
não é uma palavra muito indicada para circo, é praticar. Circo, inclusive, é
uma prática talvez mais conectada com que a gente faz aqui do que
algumas outras. E quando a gente se conheceu, eu estava bem no início, em
ebulição sobre essa cultura do movimento que eu havia descoberto há
pouco tempo que em um episódio passado eu já falei sobre isso, vocês
podem procurar lá, a história do Rodrigo Salulima e da Pratique Movimento, e
eu fui te mostrar uma entrevista dele. Vocês podem buscar essa entrevista, a
gente vai botar na descrição, "Ido Portal London Real" com Brian Rose. E eu
falei "Eu preciso te mostrar um cara, eu queria que você visse essa"
"entrevista aqui com ele." Eu já tinha assistido duas ou três vezes, estava
viciado e era em inglês e na época eu não sabia inglês tão bem, então eu
tinha que ficar assistindo várias vezes, fazendo anotações. E você começou
a assistir, eu lembro que você começou a transbordar, usando essa palavra
mesma me ensinou, você é uma pessoa que transborda, que não contém as
coisas que você sente. E você falou "Rodrigo, o que esse cara está falando"
"é transdisciplinaridade no corpo." Não sei se foi a primeira vez que eu ouvi
essa palavra mas muito provavelmente uma das primeiras. E depois desse
dia um mundo inteiro sobre transdisciplinaridade se abriu para mim.
Inclusive, na formação holística de base que eu me formei na Unipaz
também, nas conversas com o seu pai que escreveu livros e livros sobre isso
e outros temas. E aí eu queria que você falasse um pouquinho, me corrigisse
se eu falei alguma besteira ou acrescentasse se ficou faltando algo.
Faltou a capoeira, que foi muito importante, muito muito importante na
minha vida, que inclusive foi a porta de abertura para mim, foi a partir da
capoeira que eu fui atrás da dança, que eu fui atrás do circo. Então, foi muito
interessante mesmo esse dia porque eu era aquela pessoa que queria fazer
tudo. Eu tive um período da minha vida que eu praticava ashtanga, eu
acordava e ia praticar duas horas de jejum. Eu saía de lá, descia com o carro
na comercial tomando uma vitamina, ia para o circo, treinava mais três horas,
almoçava, ia para a faculdade e no dia seguinte eu tinha três danças. Então,
eu estava fazendo yoga, circo, três danças diferentes. Eu nunca estava
satisfeita, nunca era o suficiente, tinha dias que eu treinava circo duas vezes
no dia, eu sempre queria "Mas eu quero também fazer tai chi,"
"eu quero fazer tal coisa." Então, eu tinha essa coisa de ficar buscando e
nunca achar um lugar que me atendia por completo. Tanto é que, embora eu
tenha ficado no yoga doze anos, no circo não me lembro agora, capoeira
foram muitos anos também, nada me segurou por muito mais do que isso. E
quando a gente, quando você me mostrou aquela entrevista do Ido, eu
lembro até que eu estava deitada com você e eu comecei a sentar, eu fui
sentando e "Que isso, o que está acontecendo, o que esse cara está falando,"
"esse cara está falando tudo o que eu quero, tudo o que eu procuro." Quando
eu escutei o Ido falando, porque é uma entrevista longa, é uma entrevista de
uma hora e pouco, uma hora e meia, então foi uma entrevista que ele teve
muito tempo para destrinchar muitas coisas. E a primeira coisa que me
chamou muita atenção foi a abertura, a abertura dele. E não é uma abertura
qualquer, não é uma abertura solta, é uma abertura que tem um rigor. Por
rigor eu quero dizer, eu estou falando de uma perspectiva de que eu estou
aberta para o mundo, eu quero ver o que está acontecendo, então eu tenho
essa curiosidade do pesquisador de ir para o mundo e ver o que está
acontecendo por lá, no campo da fisicalidade nesse momento, só que eu
tenho um rigor interno, eu tenho meus parâmetros para saber
"Não, isso aqui para mim não serve nesse momento,"
"talvez em outro momento." Então eu pego de cada lugar que eu visito um
pouco, o que não me serve eu deixo de lado. Isso é transdisciplinaridade,
é não se fechar dentro de disciplinas. A disciplina é uma caixa, para eu poder
dizer que eu sou tal coisa, eu pratico tal coisa, quer dizer que precisei
delimitar um campo, onde as coisas acontecem ali dentro. E a
transdisciplinaridade traz esse trans antes que é três, o três que rompe com
o binário. O três que também vem de transgressão. Transgressão é uma
palavra que significa sair do outro lado. Então é uma perspectiva que eu
percebi o Ido trazendo onde ele trazia que ele bebe de muitas fontes, ele ia
para a China, estudava na China mas não se tornava um devoto daquele
professor da China. Ele pegava o que aquele cara tinha para ensinar, trazia
para a vida dele, trazia para a prática dele e o que fazia sentido ficava e o que
não fazia sentido ele descartava e aí ele ia para outro lugar e procurava em
outro lugar. Então, essa abertura com esse rigor é transdisciplinaridade. Essa
busca por não se limitar. Uma disciplina jamais pode ser transdisciplinar
porque são universos diferentes. A transdisciplinaridade não concebe um
conhecimento pronto, fechado, que consegue se limitar e dizer
"Ah, eu faço isso." Por isso que é tão difícil a gente explicar lá fora o que a
faz na Pratique, porque não é uma disciplina. E no mundo a gente foi muito
habituado a isso, a gente quer conseguir dar nome para o que a gente faz.
Esse é um problema, um desafio muito grande que a gente tem. Eu sinto aqui
na Pratique que quando a gente quer começar a explicar, as pessoas
automaticamente já pulam três casas na frente e querem, de acordo com as
vivências delas, encaixotar, rotular o que a gente faz aqui. "Ah tá, então é"
"mistura de pilates com circo. Ah, entendi, entendi, é tipo dança com luta. Ah,"
"legal, é tipo pilates só que tem um pouco de crossfit." Não, essa
necessidade de rotular impede muito com que a gente desenvolva o
verdadeiro entendimento de uma prática complexa. Quando a gente fala
prática complexa, não é porque a gente está querendo se tornar especial ou
parecer inteligente. O movimento é um guarda-chuva amplo. Isso me lembra
muito Bruce Lee, que ele fala "A gente absorve o que funciona,"
"descarta o que não funciona." Aqui, na nossa escola, eu acho que é muito
isso. A gente está aberto para absorver o que funciona, deixar aqui nessa
nuvem de movimento e descartar o que não funciona. E não é só porque é
complicado que a gente não deve falar sobre isso. Eu mesmo, no início,
talvez eu tenha caído um pouco nisso. "Ah, é muito complicado,"
"você não vai entender." Isso era uma das piores coisas que eu fazia porque
eu não estava respeitando o público e as pessoas e os alunos e eu não
estava me respeitando e mastigando essa ideia, deixando ela mais palpável
para o público externo. Aí eu vou só falar mais alguma coisas que você falou,
conectar com um outro episódio nosso. Lembra que eu falei já, galera, que
tinham alguns tipos de público que procuram a Pratique Movimento? Quando
a Bela começou a falar de todo o histórico físico dela, ela claramente é
aquele terceiro público, o entusiasta que sempre gostou, que estava
procurando alguma coisa e só não sabia que isso existia. Então, quando ela
escutou um cara falando sobre essa cultura que tinha, que deu nome, que
organizou isso, todas as células dela falaram "É isso que eu quero." E foi isso
que ela fez, ela se jogou de cabeça nessa nova jornada. Outra coisa que é
muito importante dizer é que, às vezes, vocês ouviram ela falando assim
"Ah, eu fiz capoeira, circo, yoga, dança." e pensaram "Ah, então para ela foi"
"fácil iniciar a prática de movimento." Coincidentemente, semana passada eu
estava na reunião dos professores aqui e um deles falou assim
"Ah, mas a Bela é cabulosa." Usou essa gíria. Aí todos os outros falaram
"Não, a Bela não é cabulosa." E, às vezes, as pessoas podem encarar isso
como um insulto. Mas para mim e para os outros que estavam falando que
ela não era, era o maior dos elogios porque ela é super esforçada. Você é
uma praticante de verdade, você chegou aqui com pouquíssimas qualidades,
em uma ou outra área específica. Ah legal, já tinha uma flexibilidade legal,
mas a gente não usa tanto a flexibilidade aqui, a gente usa mais a
mobilidade que é ela combinada com a força. A parte mais atlética,
de footwork, você não tinha nada de parada de mão, você tinha lesões
antigas que você estava tentando curar. Então, só para fazer, dar uma
explicada aqui né, que às vezes a gente ouve isso e pode ser que assuste,
que para quem fez tanta coisa assim fica fácil. Não, lembra, é para qualquer
tipo de pessoa, ter um corpo é o maior pré requisito e a gente não trabalha
muito atraindo aquelas pessoas com talento. Essas pessoas, na verdade,
não se sentem muito atraídas por nós, porque elas precisam ter que deixar o
ego de lado oito vezes mais do que aquela pessoa que não tem. Então você,
talvez as pessoas veem hoje em dia o tanto que você já caminhou e queiram
te rotular assim como talentosa. Eu digo para vocês que não, ela é
esforçada, ela é uma aluna, ela é uma praticante. E voltando para a
transdisciplinaridade agora. Aqui nas aulas eu costumo falar para os alunos
que eles tem que trazer diversos chapéus. Tragam diversos chapéus, no
sentido de você não sabe o que você vai precisar na aula. Então, a gente
pega esse dito popular né "Não, vou ter que usar um chapéu diferente"
"para essa atividade." Não tem como você trazer só o da força, só o do
guerreiro porque você não sabe se você vai precisar o do artista e eu acho
que transdisciplinaridade tem muito a ver com isso né, com os chapéus.
Eu queria que você falasse um pouquinho sobre isso, sobre quais são as
áreas mais importantes, se é que existe o mais importante
que tem a ver com transdisciplinaridade.
Sim, e é muito bom, só antes de entrar nisso, abrir um parênteses que tem a
ver com o que eu puxar em seguida, que é isso, esse olhar de que quando a
gente fala de prática de vida, de como... A gente de vez em quando fala aqui,
a prática de movimento se confunde com a vida, mas eu não acho que o
movimento se confunde com a vida porque eles não são duas coisas
separadas. Não pelo menos da forma como a gente faz aqui. Então, por
exemplo, aqui, embora a chamada da Pratique seja a prática física, o lugar
onde eu aprendi a ser aluna foi aqui. Eu não sabia ser uma aluna, eu não
tinha foco, eu aprendi a ter foco na prática aqui, então são muitas outras
coisas. E aí sobre essa questão, a forma mais simples da gente explicar o
que é transdisciplinaridade porque é uma área que nasce na física quântica.
Então é muito complexo, daria para fazer quinze podcasts para poder
realmente explicar a partir dessa perspectiva. Então, a forma mais tranquila
de explicar o que é transdisciplinaridade é que ela é o ponto de encontro,
ponto de convergência entre ciência, filosofia, arte e tradições de sabedoria.
E o Basarab Nicolescu que é o cara que escreveu o
"Manifesto da Transdisciplinaridade" que é um livro incrível, super
recomendo, ele traz isso, que qualquer sociedade, cultura que escolha um
desses quatro pilares como sendo mais importante que os outros está
fadada ao fracasso. Por exemplo, sociedades que só ficaram focadas nas
tradições de sabedoria, elas foram varridas pelo modernidade, não
sustentaram o rolê. A nossa sociedade que coloca ciência como soberana,
absoluta e a filosofia está lá embaixo, a arte mais embaixo ainda, quem é
que questiona a ciência? A filosofia questiona a ciência, então se a gente não
valoriza a filosofia tanto quanto a gente valoriza a ciência, a gente acaba
criando uma ciência que é desonesta, uma ciência que está comprometida
não com a vida, com os processos de vida. Então, a transdisciplinaridade,
a gente fala dela como esse ponto de encontro. E é muito incrível ver como
que ela se manifesta aqui a partir do que a gente chama de atitude
transdisciplinar, que é esse olhar refinado porque a gente não está só
praticando movimento, o nome do grupo dos professores por exemplo é
"Pratique Sapiência". Então é um grupo de pessoas que se debruça com todo
o nosso aparelho cognitivo maravilhoso sobre a prática, a gente não está lá
só fazendo por fazer, a gente faz o que a gente faz, a gente pensa sobre o
que a gente faz, reflete, transforma, puxa daqui, pega de lá, está o tempo
inteiro em transformação. Então, não tem como separar. A gente está lá,
quando a gente está lá fazendo os movimentos mais somáticos, mais
ligados um pouco mais a dança, como que a gente separa isso de arte?
Como que a gente separa o nosso corpo da arte? Como que tem arte sem o
corpo? Então, na verdade, é uma forma de olhar para o mundo. Só que a
forma de olhar para o mundo, o olhar é uma coisa muito importante porque a
forma como eu olho para o mundo tem a ver com o que eu acredito por atrás
e a forma como eu olho para o mundo vai determinar a forma como eu
interajo com o mundo. Então se eu olho para o corpo e para mim o corpo é
uma máquina, eu vou me relacionar com pessoas como pessoas fossem
máquinas porque esse é o meu pressuposto, esse é o meu paradigma, isso
que está por trás do que eu acredito. Então, esse olhar transdisciplinar que
eu acho que é a coisa mais importante de falar aqui, que gera essa atitude
transdisciplinar, é esse olhar aberto, olhar que olha para um aluno, que olha
para a nossa prática e não limita o nosso aluno a só um corpo físico. Ele não
é só um corpo, ele também não é só uma cognição, ele também não é só um
corpo emocional, ele é uma totalidade, a gente é uma totalidade. E eu acho
que é por isso que a prática costuma tocar tão profundamente as pessoas.
É muito comum depois de aulão, está metade da turma chorando porque eu
acho que é um lugar onde a gente está conseguindo enxergar as pessoas
dentro de um contexto educacional, enxergar as pessoas como uma
totalidade, se relacionar com elas como uma totalidade, que pressupõe uma
coisa muito respeitosa, um olhar muito respeitoso para o ser humano e a
para as potencialidades, o que a gente está fazendo aqui. Acho que só o fato
da gente não se chamar de academia, de se chamar de escola já traz isso,
que o nosso foco é no processo, não é na construção de uma coisa rígida
porque aí não seria transdisciplinar. Então, o fato da gente ter esse corpo,
você fala muito isso nos aulões, onde a gente vai estar daqui a cinco anos,
daqui a dez anos, a gente tem ideias mas a gente não consegue dizer
exatamente porque é uma prática que está aberta, que está o tempo inteiro
em transformação, que está o tempo inteiro se lapidando, o tempo inteiro
melhorando, transformando. De repente isso aqui a gente fazia isso muito no
começo e a gente percebe que não faz tanto sentido botar tanto foco nisso,
então vamos botar mais foco em outra coisa e assim a gente vai crescendo
e aprendendo e isso é real, isso é vida. Se a gente olha para a vida, o que está
pronto? O que existe na vida que está pronto, não tem nada que está pronto.
A gente está sempre em um processo de ir para um outro lugar.
A gente sobe uma montanha, tem que descer.
É um verbo, uma construção. Falei muito sobre isso também no nosso
primeiro episódio, que a Pratique é uma página em branco, ela é modular, ela
é mutável, ela cria novas conexões, ela se desfaz das conexões antigas.
E toda vez que eu estou lendo sobre transdisciplinaridade ou sobre outras
teorias também que tem a ver com isso, por exemplo, a teoria rizomática do
Deleuze e Guattari. É isso, o conhecimento é um rizoma, acho que tem muito
a ver com transdisciplinaridade também. Um rizoma, para quem não sabe,
é um gengibre por exemplo. O gengibre é uma raiz, uma raiz que não tem um
início e não tem um fim, você não sabe aonde começa o gengibre e aonde
termina o gengibre. Ele pode crescer por qualquer um dos lados. Se você
quebrar ele, ele volta a crescer de novo. Então aqui na nossa prática, a gente
não bota muito hierarquia. A gente vai mapeando mais ou menos aonde a
gente está, aonde cada aluno está, qual é o seu momento de vida e como
você vai usar a prática a seu favor. Outra coisa interessante que você falou
sobre às vezes dos aulões despertar sentimentos nas pessoas. As pessoas,
eu acho, estão com abstinência de sentir hoje em dia e, às vezes, a gente
sentir no próprio corpo não tem como fugir. Com a mente a gente ainda
consegue bloquear, a gente cria umas construções, a gente cria uns
bloqueios, cria umas couraças e a gente consegue se afastar desses
sentimentos. Mas o corpo não mente, às vezes ele vai gritar e vai ser difícil
reagir em oposição ao que esse corpo está gritando. Eu falei o corpo não
mente, mas o corpo fala e o corpo mente também. E se a gente só ouvir o
corpo, a gente às vezes também não faz nada. Então, não quero romantizar
essa inteligência do corpo, eu não quero dicotomizar dizendo também que a
gente tem um corpo e a gente tem uma mente. É trans, é uma coisa só.
É uma dicotomia muito antiga, é muito anos 70 essa divisão e eu não quero
dizer também que a gente tem que sempre ouvir o que o nosso corpo está
falando que é o certo. Porque se a gente só ouvir o que o nosso corpo está
falando sempre, vai ter dia que a gente não vai nem levantar da cama porque
tem dia que ele vai falar assim "Fica na cama, pelo amor de deus, tudo que"
"eu não quero que você faça é que você levante para trabalhar,"
"para fazer esporte." Vai ter um dia ou outro que você vai ter que se respeitar,
ser generoso com você, se dar um presente, vai ter um dia ou outro, mas tem
que ter muito cuidado para não usar isso como desculpa, como uma
fraqueza para não seguir em frente. Várias vezes não é isso que vai ser o
certo para acontecer. Você falou também sobre o foco e a gente está
falando sobre um tema muito denso. E eu escolhi começar por esse tema
mais denso na nossa conversa porque seria mais fácil do público, de vocês,
alunos e ouvintes, manterem o foco. Se deixasse mais para o final, talvez já
estivesse de saco cheio ali. A gente tem um tempo limitado mas isso não
quer dizer que a gente tenha que se rotular, sou focado, não sou focado.
Você mesma disse "Eu não tinha foco, eu percebi que não tinha foco." Então,
eu queria deixar um recado aí para vocês pensarem também que foco é
treinável. Então foco é treinável. Dito isso, eu vou tentar fazer mais uma
pergunta só sobre transdisciplinaridade, então atenção, foco, treinem agora
ainda um pouquinho, tentem mastigar essas ideias. Depois a gente vai para
uma parte mais leve, falando um pouquinho da sua história no movimento,
dos nossos movement camps na Tailândia, na nossa prática em casa
também, descobrir se o santo de casa faz milagre ou não. Não sei se a gente
vai entrar nesses temas polêmicos para o casal, vamos tentar deixar leve.
Mas eu queria que você falasse um pouquinho sobre o especialista e o
generalista e aí depois eu posso fazer uma relação com o que você falar
com o especialista e o generalista na prática de movimento, na escola
Pratique Movimento, na nossa perspectiva que a gente ensina aqui.
Muito legal. A gente criou, na verdade o paradigma, esse solo aonde a gente
pisa, aonde a gente constrói as nossas fundações e constrói as casas em
cima é o paradigma, como a gente se relaciona com o mundo, o que a gente
entende por mundo. A gente vem vivendo há séculos dentro de um
paradigma que gerou um fracionamento da gente. A gente entende, a gente
aprende que a gente tem uma mente, que a gente tem um corpo, que a gente
tem emoção e por mais que a gente saiba lá no fundinho que isso é uma
grande mentira, que nada é separado de nada, a gente continua agindo na
vida como se fosse. Então, esse paradigma, cientificista que fracionou e
pegou o todo e dividiu em milhões de pedacinhos para que a gente se
debruçasse infinitamente que tem o seu lugar muito importante, a gente
precisa de pessoas especialistas entrando em algumas áreas e descobrindo,
fazendo coisas importantes. Ela gerou uma incapacidade geral da gente
enquanto humanidade de conseguir dar três passos para trás e voltar a
enxergar o inteiro. O Nicolescu, tem uma parte do livro dele
"Manifesto da Transdisciplinaridade" que eu acho fantástica que fala assim
"A soma dos maiores especialistas não é capaz de gerar nada que não seja"
"uma incompetência generalizada." Porque o fato é que a vida não é dividida.
Como é que a gente vai solucionar um problema do aquecimento global com
uma especialidade? A gente não vai resolver. Como a gente resolve o
problema da crise hídrica no DF com um geógrafo?
E também a soma das partes é maior que o todo. O Ido costuma dizer muito
isso na prática de movimento. 1 + 1 + 1 + 1 não é 4, 5, é 17.
É 17, exatamente, que é a complexidade que é um dos pressupostos básicos
da transdisciplinaridade. Então, a gente gerou essa coisa. Meu pai tem uma
frase que eu acho muito maravilhosa, eu morro de rir dela, que ele fala assim
"O especialista, aquele exótico ser que sabe quase tudo sobre quase nada"
"e o generalista, aquele exótico ser que sabe quase nada sobre quase tudo."
Nenhum dos dois vai conseguir dar uma resposta real para a gente sobre os
processos da vida porque os processos da vida não acontecem dessa
maneira. E eu percebo na minha experiência aqui na Pratique, eu acho que a
digital desse trabalho, da forma como a gente pratica o movimento, é
justamente encontrar o caminho do meio, é transgredir essas duas
polaridades, que não é se perder nas minúcias, que é o especialista, a gente
vai, vai, vai até que a gente se perde ali, de repente um ortopedista que não
consegue mais tratar um ombro porque ele se especializou no dedão do pé
esquerdo, por exemplo. A gente não se perder em uma área e ao mesmo
tempo não ficar nessa coisa solta de "Ah, hoje vamos fazer tal coisa."
Mas a gente não se aprofundou nisso, a gente não sabe o porquê que
a gente está fazendo isso, que aí vem aquela questão de falta de foco,
de falta de clareza, que não é o que transdisciplinaridade é. É essa abertura,
essa flexibilidade junto com um rigor, com um rigor que vem da gente ter
claro o que é importante para a gente. E aí a gente entrar nesse processo,
que é o processo que a gente trabalha aqui, que é o foco no processo e não
no lugar aonde a gente vai chegar. Em outras especialidades talvez eu tenha,
meu foco é "Eu quero fazer, eu quero ser capaz de fazer tal movimento,"
"eu quero ser a melhor paradista de mão do mundo para entrar no Guinness."
Se essa é a sua missão, você vai ser infeliz aqui porque a nossa missão aqui
não é chegar em um lugar, é estar sempre caminhando. E isso é essa
abertura da transdisciplinaridade. Respondeu um pouco?
Respondeu demais. É até um pouco da crítica que eu tenho que algumas
pessoas na cultura do movimento falam isso "Nós somos generalistas"
"no movimento." E eu nunca fiquei a vontade com essa palavra. Não ser
especialista, tudo bem, eu sei que não sou especialista, mas eu nunca me
considerei um generalista ou pelo menos... Pode ser até que eu seja
generalista agora, que eu ainda não cheguei em algum lugar, mas eu fico
pensando que uma das missões, algumas palavras-chaves, é isso que você
falou, abertura, descoberta, auto-descoberta. Então eu, o Rodrigo Salulima,
nessa vida, nesse mundo, caminhando desse jeito com tudo, com o
meio ambiente que eu nasci, com os genes que eu recebi, eu vou absorver
informações, eu vou criar conexões, eu vou transbordar conhecimentos, eu
vou criar coisas novas. Então, é mais sobre integrar do que generalizar ou se
especializar. É um integrar mas é um integrar que transborda, que se
mantém aberto para mudanças, que vai caminhando, e aí eu vou usar um
pouquinho do termo do tipo de agricultura que a gente pratica, que é a
agricultura sintrópica. É uma sintropia. Sintropia é o contrário de entropia.